Ninguém percebeu quem era o homem que, na igreja, se colocou frente do caixão. Falou, discursou, opinou.
Os presentes, alguns, que não eram familiares diretos, não faziam ideia e convenceram-se que seria algum familiar ou mesmo alguém da confiança da família.
Só no final do monólogo perceberam que aquela pessoa que vestia uma camisa e umas calças de ganga não era nem mais nem menos, que o padre.
Começa o falatório muito baixinho... porque é que o padre não ia vestido de padre? Poderia não ter tido tempo de se trajar, dada a hora da noite? Que coisa estranha se passava ali?
Pois... tudo não passou de um favor, uma migalha que a igreja deu aos páis destroçados, os suícidas são pecadores, não merecem ser encomendados, atentaram contra a vontade de deus. Ainda assim, com receio de ser igualmente pecador, o padre (porreiro, porque até lá foi) apresenta-se "à civíl", tipo off the record, não se compromete.
Segundo consta, estes suícidas, pecadores, não têm mesmo direito a entrar no céu, ficam no purgatório.
Esta, meus amigos, é a igreja de misericórdia, a igreja que acode e acolhe os aflitos, a igreja que representa o amor e a fraternidade eterna e suprema.
Bem, o assunto do homem misterioso ficou resolvido.
Os factos são só para quem os quer vêr. Por isso abandonei a igreja há muitos anos. Por isso não acredito em padres nem religiões. Por isso só lá entro, básicamente em duas circunstâncias, ou num casamento a contar o tempo que falta para a festa, ou num velório porque, infelizmente, é o sítio para onde foram todos os mortos que conheci.
Desta história só há uma coisa a reter:
Ainda não tinha 25 anos e não conseguiu viver com a vida que deus lhe deu.
Atirou-se da Ponte 25 de Abril.
Nota: Não escrevo igreja, deus, nem outras cenas, com letra maíuscula por vontade própria.