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Hortelã Pimenta

Hortelã Pimenta

14
Nov17

Ida ao cabeleireiro


Constança

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Ontem fui a um cabeleireiro na Rua de São Bento.

Morei nesta rua desde o meu nascimento, até ter completado 14 anos.

Até aqui tudo normal, não fosse ter morado na casa exatamente por cima do dito cabeleireiro. É um prédio pequeno com apenas quatro apartamentos, dois por andar.

Havia mais miudas da minha idade e, escusado será dizer que, a vida era maravilhosa: os pais iam trabalhar e, como só tinhamos aulas de manhã ou de tarde, resumidamente, passávamos o tempo na brincadeira...

Tinhamos um quintal com uma nespereira, uma parreira, um pessegueiro e muitas flores. Nos quintais circundantes, havia romãs, ameixas e laranjas. Todos os anos era uma verdadeira enxurrada de fruta da época!

Mas o melhor de tudo era estarmos sempre a trepar ás árvores e a saltar de uns quintais para os outros. Para irmos brincar com as vizinhas usávamos mais as árvores do que a porta da rua :))).

No quintal da casa ao lado da minha, havia uma espécie de varandim que dava para um saguão e que pertencia a um espaço comercial, que havia sido uma loja no rés-do-chão.

Tenho muito vagas lembranças de ter visto aquilo aberto e, por isso, devia ser mesmo muito pequena quando fechou.

Contávam-nos que tinha sido uma casa de máscaras e disfarces de carnaval.

Ás vezes, brincadeira puxa brincadeira, lembrávamo-nos de pendurar cordas nas grades e descer até lá abaixo. Lá, havia um tanque cheio de água acumulada da chuva, muito verde, e costumávamos ficar ali horas a ver uma espécie de girinos. Digo uma espécie porque, não faço ideia se podem nascer girinos em água parada.

E foi numa dessas tardes que resolvemos entrar na antiga loja de disfarçes de carnaval. As portas estavam meio abertas.

Aquilo era só lixo! Caixotes e mais caixotes com revistas e uns livrinhos que na altura achei muito giros. Eram Almanaques para donas de casa dos anos 50, 60 e 70. Não tinham fotos, mas como já na altura eu era uma apaixonada por desenho, sentei-me no chão sujo e deliciei-me a ver as ilustrações. Eram bonequinhas muito "coquetes", ora a tirar tabuleiros com bolinhos do forno, ora a mostrar sabonetes com uns nomes maravilhos, ora a maquilhar-se... os desenhos eram mesmo muito, muito giros.

Depois, alguma de nós se lembrou de vêr o que havia nos restantes caixotes amontoados pelo espaço abandonado.

Qual não foi o nosso espanto quando descobrimos que a lenda era real e as caixas estavam cheias de fatos de carnaval !

Ora, com 7 ou 8 anos, foi como descobrir um baú de piratas cheio de moedas de ouro. O maior tesouro alguma vez encontrado em todo o mundo...

Sabiamos, por conversas que ouviamos dos nossos pais, que os donos já tinham morrido há muitos anos, e que quem comprasse aquele espaço ia comprar também a grande maçada de deitar aquela tralha toda ao lixo. Imaginem: NO LIXO!!!

Não resistimos, e trouxemos um vestido para cada uma (Ok. não foi lá muito bonito, mas... ia tudo para o lixo!).

Eram vestidos de princesa, lembro-me dos três: um, era cor de rosa e com uma grande roda em tule, outro era branco, até aos pés e de acabamento assimétrico, e o terceiro era azul celeste, dentro do mesmo género.

Ainda hoje estranho o facto de não ter ideia de alguém nos ter questionado de onde veio aquilo. Mas como no início dos anos 80 era costume os miudos trocarem coisas entre si, penso que aí esteja a resposta.

Aqueles vestidos fizeram os nossos carnavais até deixarem de nos servir. Ás vezes voltávamos lá para ver se os bichinhos do tanque tinham crescido, e para ver o resto do tesouro da loja fantásma abandonada.

Hei-de agradecer toda a vida por nenhuma de nós ter caído por ali abaixo e ter-se partido toda!

Ontem, deitada na cadeira de massagens, com pratas por todo o cabelo e enquanto esperava pela lavagem, juro que vi três ou quatro miudas felizes a correr de um lado para o outro, a abrir caixotes, e a rir, rir, rir . Tão bem lhes reconheci o rosto.

E uma delas, sentada a um canto, junto a um caixote de livros, com ar observador e introspetivo, mas tão feliz sem o saber...

E eu, espectadora, por momentos deixei escapar alguns disfarçados sorrisos a estas meninas que só eu via. Corriam, riam e gritavam por entre os cabeleireiros atarefados sem que estes dessem por elas.

É por isso que tenho a certeza que as casas e lugares que viram muitas vidas, onde se passaram coisas boas e más, guardam essas memórias consigo. A energia desses momentos fica lá entranhada. 

Ninguém ali, ontem, podia sentir isto. Ninguém ali sabe as histórias boas que partilho com aquele lugar. Só eu.

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